09 de novembro de 2024.
Quando forem concluídos os registros da história sobre a sociedade capitalista, quando todos os seus crimes forem expostos aos olhos de todos e quando vigorar o veredicto definitivo de uma humanidade tardia, acreditamos que, entre esses crimes, aqueles referentes aos maus-tratos das crianças proletárias terão o maior peso diante da história julgadora (ROSA LUXEMBURGO)
Para as crianças que fomos, que somos e as que seremos.
Amigos, irmãs e parceiros/as de luta,
Desejamos que essa carta e as palavras aqui escritas encontram vocês bem, e que as belezuras miúdas e grandiosas da vida componham os seus corações! Vocês já devem saber que escrevemos em nome do Movimento Luta Popular, em especial em nome das crianças e dos adolescentes que vivem nas ocupações e nas favelas onde atuamos.
Por aqui, no corre-corre de brincar e de lutar, temos construído uma história em busca de um mundo onde o modo de ser e de sentir das crianças sejam valorizados. Isso porque crianças e adolescentes são parte do nosso povo, da nossa classe, e parte de nós mesmos.
Afinal de contas, se olharmos para o tempo passado veríamos o pipa, o esconde-esconde, o pião, a bola, as bonecas de pano e de espiga de milho, mas não só: veríamos a gente, mesmo pequenos, trabalhando na roça, na casa dos ricos, no farol, pegando latinha, mexendo a argamassa das construções. Veríamos as ruas sem saneamento básico, a falta de comida na mesa, a violência. Mas também nos reconheceríamos na luta pela sobrevivência, ao lado das nossas famílias e amigos.
Queremos mostrar como as memórias da nossa infância são recheadas de tantas coisas, inclusive de luta, muitas lutas! Ser criança das quebradas no passado e na atualidade é, necessariamente, ser uma criança que produz formas de resistências, conscientes ou não.
As recentes cenas do massacre cometido pelo estado de Israel contra a população Palestina nos ensinam sobre essa resistência das crianças frente a uma das maiores tragédias produzidas pela burguesia. Em meio aos escombros dos bombardeios, crianças procuram meios para denunciar o ocorrido ao mesmo tempo em que garantem um lapso temporal para o brincar. Como uma faísca, a brincadeira nos fios estourados de Gaza propaga a energia necessária para a continuidade das resistências do nosso povo.
Pelos lados de cá, em muitos momentos de nossa história, algo semelhante ocorre. Vocês recordam das invasões europeias nas terras de Pindorama (hoje chamado de Brasil)? Aqui viviam mulheres, homens, crianças, jovens e idosos, de diferentes culturas e formas de viver, compreendendo a terra, as aguas e todos os seres como membros de uma grande família! Eram os povos indígenas. Quando os europeus chegaram nessas terras para explorar a natureza e as pessoas que aqui viviam, os povos indígenas imediatamente se organizaram para se protegerem das violências causadas. Aymberê, um jovem Tupinambá, com seus 14 anos de idade, liderou a primeira grande resistência contra os colonizadores, chamada de Confederação dos Tamoios.
Naquele tempo ainda não era muito certo esses conceitos sobre o que é ser criança ou adolescente, nem para os povos indígenas e nem para os europeus. Porém já havia uma percepção que compreendesse algumas distinções em relação aos adultos. O fato é que, assim como Aymberê, outras tantas crianças e adolescentes ao longo de toda a história colocaram seus corpos e suas formas de entender o mundo em defesa de suas vidas. Foi assim também ao longo da escravidão, quando crianças e adolescentes trazidos forçadamente do continente africado para serem escravizados aqui resistiram. Elas realizavam muitas traquinagens como forma de resistência às violências submetidas pelas elites. A fuga das senzalas era costumeira.
Já durante o período inicial de industrialização, crianças e adolescentes ocuparam também boa parte dos postos de trabalho das fábricas, recebendo baixíssimos salários e com jornadas de trabalho gigantescas. Quando as greves operárias estouraram, eram exatamente elas quem estavam nas ruas, paralisando a produção e protestando por melhores condições de trabalho.
Foi assim também em tantos outros momentos de nossa história: quando em 1964, com o Golpe Militar, as resistências contra os militares foram produzidas por jovens, e alguns bem mais jovens do que imaginamos. Marcos Nonato, o Curumim, aos 14 anos foi membro da Ação Libertadora Nacional, ao lado de Carlos Marighella. Ao mesmo tempo, crianças e adolescentes que viviam em condições de pobreza e que usavam as ruas das cidades como suas moradas, foram se forjando espaços de organização popular, que culminaram, em 1980, no movimento nacional meninos e meninas de rua, com organização de assembleias e decisões politicas tomadas por aqueles quem eram vistos pela sociedade como meros “delinquentes”.
Esses processos organizativos produzidos pelas crianças e pelos adolescentes não cessaram nem mesmo com as permanentes capturas de suas pautas por organizações não-governamentais e pela insistência disciplinadora dos programas da educação formal e não formal para a via dos consensos. Ainda que esse projeto tenha ganhado força, as frestas da criatividade de resistências ao avesso da lógica legalista e burocrática, ganhou ainda respiros.
Junho de 2013, ao lado dos Rolezinhos, realizados no mesmo ano, representaram a retomada das ruas por crianças e adolescentes ocupando lugares e disputas históricas que sempre fizeram parte de nossas existências. Anos depois, em 2015, a ocupação das escolas, reforçaram novamente a luta de classes presente nas dinâmicas da vida de crianças e adolescentes.
Na experiencia do nosso movimento, há também muitos marcadores importantes sobre a participação delas em todo o processo de organização e luta em defesa das ocupações de moradia, contra os despejos, e na produção de relações mais humanizadas nas quebradas, produzindo arte e cultura.
O fato é que, ainda que a gente tenha tantos aspectos históricos sobre a importância das crianças e dos adolescentes na dinâmica da luta de classes, porque muitos setores da esquerda continuam achando que a construção de ações junto a elas é coisa de menor importância, ou “coisa de ong”? O que será, companheiros, que nos leva a pensar que queimar pneu em uma avenida é mais grandioso do que construir processos organizativos junto a crianças e adolescentes?
Poderíamos pensar um bucado de possíveis questões, mas uma é a mais próxima para nossa conversa inicial: considerando as práticas de cuidado como um lugar menos qualificado, visto a sua associação como algo socialmente destinado às mulheres, e, portanto, em construções machistas vistas como de menor valor, tratamos as “coisas de crianças” e “coisas de mulheres” como alheias às urgências do conjunto da classe trabalhadora, considerado uma “perda de tempo”. O que essa desqualificação não coloca na ponta do lápis é que são exatamente as mulheres e as crianças que estão e estiveram a frente das inúmeras resistências nos territórios – e nos espaços produtivos/das relações de trabalho -e que propagaram importantes saltos para as organizações políticas. Foi ainda, em nome das nossas crianças do hoje e do amanhã a possibilidade de inspirações para o engajamento popular – a luta pelas creches, pela educação, pelo combate as diversas formas de violências e por espaço para brincar!
São as crianças quem tem gritado sobre o quanto a cidade esmaga o tempo, esmaga os encontros e esmaga o corpo, literalmente. Crianças e adolescentes são permanente alvos da violência policial e paramilitar, por assassinatos e desparecimentos forçados, dado que a cada ano cresce, mesmo com as supostas proteções legais previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Nos últimos três anos, foram, em média,13,5 mortes violentas contra crianças e adolescentes por dia, segundo os dados publicados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Muitas mortas ocorridas nos espaços públicos em momentos de lazer, em frente a suas casas ou mesmo a caminho da escola, demonstrando o peso dos conflitos fundiários, em que a gana dos de cima em vista da especulação da terra e de demais mercados passa por cima de tudo e todos – inclusive de crianças e de adolescentes.
Sim, meus camaradas, crianças e adolescentes estão entre nós e estão em nós! Vivendo em contextos de pobreza, de fome, morando nas ruas e nas ocupações. De acordo com a Campanha Despejo, até março de 2022, mais de 97, 3 mil crianças estão ameaçadas de despejo. E se concretizado os despejos, essas crianças engrossarão os dados do aumento de crianças e adolescentes em situação de rua. Na cidade de São Paulo, a quantidade de crianças e adolescentes em situação de rua cresceu 12 vezes nos últimos 10 anos.
Carregamos experimentações no passado que impulsionaram as nossas escolhas militantes também no hoje, mesmo que essa escolha possa ter demorado alguns anos. Portanto, porque não acolhermos e engajarmos, desde pequenos, as crianças e os adolescentes em nossos sonhos e nossas lutas? Por que não escutarmos atentamente as suas formas de ver e perceber o mundo novo a ser construído? Por que não aproveitarmos o saber lúdico e do brincar para convocar a nossa militância a um projeto em que a leveza tenha lugar?
A verdade é que enquanto companheiros do mesmo campo político que nós desprezamos esses sujeitos como agentes políticos, os setores à direita já os identificaram como potenciais propagadores de sua visão de mundo, consolidando exércitos mirins de influencers pró capitalismo. Pois é desde o final da década de 1980, com o boom das organizações não-governamentais e das empresas filantrópicas que a direita já vinha identificando a importância de tratar a infância como um nicho de mercado e de alvo para a construção de uma pedagogia do consenso. O desdobramento dos grandes empresariados na elaboração das politicas publicas para crianças e adolescentes tem tido os grandes resultados a favor do capital nos dias atuais: desde a terceirização/precarização das políticas publicas para crianças e adolescentes e das relações de trabalho daqueles que atuam nesses seguimentos, até a conformação de um pensamento que crianças devem ser moldadas para um futuro, e se portarem de acordo com as exigências dessa nova sociabilidade de precarizações e desproteções em toda dimensão das relações sociais.
Por isso, temos uma grande tarefa: organizar os pequenininhos. Garantir espaços de escuta, desenvolver aprendizagens engajadas em valores como a coletividade e a solidariedade, estimular a criação e os processos de autogoverno entre as próprias crianças e as inserindo nos espaços de decisão e de ação do movimento como um todo.
O Conselhinho das Crianças do Luta Popular tem o objetivo colocar as crianças entre seus pares para trocarem percepções e experiencias de autorganização em seus territórios, bem como dar unidade para as ações do Luta Popular a partir de suas racionalidades. É momento de partilhar ideias e brincadeiras, ampliando repertorio cultural e identificando os pontos em comum sobre o ser criança das periferias. Os adultos, como mediadores desse encontro, devem manter a escuta atenta, auxiliar quando necessário, e registrar os debates e encaminhamentos. Esse material de registro tem como finalidade mais do que provocar uma agenda de ações, mas sim de nos auxiliará a ampliar a leitura sobre as relações sociais e seu atravessamento na vida das novas gerações para termos elementos mais assertivos quanto a elaboração de nossa atuação.
Esperamos que possamos caminhar juntos para a construção de um movimento e de uma luta de nossa classe onde consigamos reconhecer as formas e as necessidades de todas as fases da vida como parte da própria dinâmica da luta de classes, sendo assim todas, crianças e adolescentes, também os nossos aliados nas lutas!
ORGANIZAR OS PEQUENININHOS, PRA DERRUBAR OS GRANDÃO!